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A ARTE ESPIRITUAL: CAPs 04 A 07
A ARTE ESPIRITUAL: CAPs 04 A 07

CAPÍTULO 4 - Quais são os instrumentos das boas obras

Primeiramente, amar ao Senhor Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças. 
 Depois, amar ao próximo como a si mesmo. 
 Em seguida, não matar. 
 Não cometer adultério. 
 Não furtar. 
 Não cobiçar. 
 Não levantar falso testemunho. 
 Honrar todos os homens. 
 E não fazer a outrem o que não quer que lhe seja feito. 
 Abnegar-se a si mesmo para seguir o Cristo. 
 Castigar o corpo. 
 Não abraçar as delícias. 
 Amar o jejum. 
 Reconfortar os pobres. 
 Vestir os nus. 
 Visitar os enfermos. 
 Sepultar os mortos. 
 Socorrer na tribulação. 
 Consolar o que sofre. 
 Fazer-se alheio às coisas do mundo. 
 Nada antepor ao amor de Cristo. 
 Não satisfazer a ira. 
 Não reservar tempo para a cólera. 
 Não conservar a falsidade no coração. 
 Não conceder paz simulada. 
 Não se afastar da caridade. 
 Não jurar para não vir a perjurar. 
 Proferir a verdade de coração e de boca. 
 Não retribuir o mal com o mal. 
 Não fazer injustiça, mas suportar pacientemente as que lhe são feitas. 
 Amar os inimigos. 
 Não retribuir com maldição aos que o amaldiçoam, mas antes abençoá-los. 
 Suportar perseguição pela justiça. 
 Não ser soberbo. 
 Não ser dado ao vinho. 
 Não ser guloso. 
 Não ser apegado ao sono. 
 Não ser preguiçoso. 
 Não ser murmurador. 
 Não ser detrator. 
Colocar toda a esperança em Deus. 
O que achar de bem em si, atribuí-lo a Deus e não a si mesmo. 
Mas, quanto ao mal, saber que é sempre obra sua e a si mesmo atribuí-lo. 
Temer o dia do juízo. 
Ter pavor do inferno. 
Desejar a vida eterna com toda a cobiça espiritual. 
Ter diariamente diante dos olhos a morte a surpreendê-lo. 
Vigiar a toda hora os atos de sua vida. 
Saber como certo que Deus o vê em todo lugar. 
Quebrar imediatamente de encontro ao Cristo os maus pensamentos que lhe advêm ao coração e revelá-los a um conselheiro espiritual. 
Guardar sua boca da palavra má ou perversa. 
Não gostar de falar muito. 
Não falar palavras vãs ou que só sirvam para provocar riso. 
Não gostar do riso excessivo ou ruidoso. 
Ouvir de boa vontade as santas leituras. 
Dar-se freqüentemente à oração. 
Confessar todos os dias a Deus na oração, com lágrimas e gemidos, as faltas passadas e [58 daí por diante emendar-se delas. 
Não satisfazer os desejos da carne. 
Odiar a própria vontade. 
Obedecer em tudo às ordens do Abade, mesmo que este, o que não aconteça, proceda de outra forma, lembrando-se do preceito do Senhor: "Fazei o que dizem, mas não o que fazem". 
Não querer ser tido como santo antes que o seja, mas primeiramente sê-lo para que como tal o tenham com mais fundamento. 
Pôr em prática diariamente os preceitos de Deus. 
Amar a castidade. 
Não odiar a ninguém. 
Não ter ciúmes. 
Não exercer a inveja. 
Não amar a rixa. 
Fugir da vanglória. 
Venerar os mais velhos. 
Amar os mais moços. 
Orar, no amor de Cristo, pelos inimigos. 
Voltar à paz, antes do pôr-do-sol, com aqueles com quem teve desavença. 
E nunca desesperar da misericórdia de Deus. 
Eis aí os instrumentos da arte espiritual:  se forem postos em ação por nós, dia e noite, sem cessar, e devolvidos no dia do juízo, seremos recompensados pelo Senhor com aquele prêmio que Ele mesmo prometeu:  "O que olhos não viram nem ouvidos ouviram preparou Deus para aqueles que o amam".  São, porém, os claustros do mosteiro e a estabilidade na comunidade a oficina onde executaremos diligentemente tudo isso.

 

CAPÍTULO 5 - Da obediência

O primeiro grau da humildade é a obediência sem demora.  É peculiar àqueles que estimam nada haver mais caro que o Cristo;  por causa do santo serviço que professaram, por causa do medo do inferno ou por causa da glória da vida eterna,  desconhecem o que seja demorar na execução de alguma coisa logo que ordenada pelo superior, como sendo por Deus ordenada.  Deles diz o Senhor: "Logo ao ouvir-me, obedeceu-me".  E do mesmo modo diz aos doutores: "Quem vos ouve a mim ouve".

 Pois são esses mesmos que, deixando imediatamente as coisas que lhes dizem respeito e abandonando a própria vontade,  desocupando logo as mãos e deixando inacabado o que faziam, seguem com seus atos, tendo os passos já dispostos para a obediência, a voz de quem ordena.  E, como que num só momento, ambas as coisas - a ordem recém-dada do mestre e a perfeita obediência do discípulo - são realizadas simultânea e rapidamente, na prontidão do temor de Deus.  Apodera-se deles o desejo de caminhar para a vida eterna;  por isso, lançam-se como que de assalto ao caminho estreito do qual diz o Senhor: "Estreito é o caminho que conduz à vida",  e assim, não tendo, como norma de vida a própria vontade, nem obedecendo aos próprios desejos e prazeres, mas caminhando sob o juízo e domínio de outro e vivendo em comunidade, desejam que um Abade lhes presida.  Imitam, sem dúvida, aquela máxima do Senhor que diz: "Não vim fazer minha vontade, mas a d’Aquele que me enviou".

Mas essa mesma obediência somente será digna da aceitação de Deus e doce aos homens, se o que é ordenado for executado sem tremor, sem delongas, não mornamente, não com murmuração, nem com resposta de quem não quer.  Porque a obediência prestada aos superiores é tributada a Deus. Ele próprio disse: "Quem vos ouve, a mim me ouve".  E convém que seja prestada de boa vontade pelos discípulos, porque "Deus ama aquele que dá com alegria".  Pois, se o discípulo obedecer de má vontade e se murmurar, mesmo que não com a boca, mas só no coração,  ainda que cumpra a ordem, não será mais o seu ato aceito por Deus que vê seu coração a murmurar;  e por tal ação não consegue graça alguma, e, ainda mais, incorre no castigo dos murmuradores se não se emendar pela satisfação.

 

CAPÍTULO 6 - Do silêncio

Façamos o que diz o profeta: "Eu disse, guardarei os meus caminhos para que não peque pela língua: pus uma guarda à minha boca: emudeci, humilhei-me e calei as coisas boas".  Aqui mostra o Profeta que, se, às vezes, se devem calar mesmo as boas conversas, por causa do silêncio, quanto mais não deverão ser suprimidas as más palavras, por causa do castigo do pecado?  Por isso, ainda que se trate de conversas boas, santas e próprias a edificar, raramente seja concedida aos discípulos perfeitos licença de falar, por causa da gravidade do silêncio,  pois está escrito: "Falando muito não foges ao pecado",  e em outro lugar: "a morte e a vida estão em poder da língua".  Com efeito, falar e ensinar compete ao mestre; ao discípulo convém calar e ouvir.

Por isso, se é preciso pedir alguma coisa ao superior, que se peça com toda a humildade e submissão da reverência.  Já quanto às brincadeiras, palavras ociosas e que provocam riso, condenamo-las em todos os lugares a uma eterna clausura, para tais palavras não permitimos ao discípulo abrir a boca.

 

CAPÍTULO 7 - Da humildade

Irmãos, a Escritura divina nos clama dizendo: "Todo aquele que se exalta será humilhado e todo aquele que se humilha será exaltado".  Indica-nos com isso que toda elevação é um gênero da soberba,  da qual o Profeta mostra precaver-se quando diz: "Senhor, o meu coração não se exaltou, nem foram altivos meus olhos; não andei nas grandezas, nem em maravilhas acima de mim.  Mas, que seria de mim se não me tivesse feito humilde, se tivesse exaltado minha alma? Como aquele que é desmamado de sua mãe, assim retribuirias a minha alma.

 Se, portanto, irmãos, queremos atingir o cume da suma humildade e se queremos chegar rapidamente àquela exaltação celeste para a qual se sobe pela humildade da vida presente,  deve ser erguida, pela ascensão de nossos atos, aquela escada que apareceu em sonho a Jacó, na qual lhe eram mostrados anjos que subiam e desciam.  Essa descida e subida, sem dúvida, outra coisa não significa, para nós, senão que pela exaltação se desce e pela humildade se sobe.  Essa escada ereta é a nossa vida no mundo, a qual é elevada ao céu pelo Senhor, se nosso coração se humilha.  Quanto aos lados da escada, dizemos que são o nosso corpo e alma, e nesses lados a vocação divina inseriu, para serem galgados, os diversos graus da humildade e da disciplina.

 Assim, o primeiro grau da humildade consiste em que, pondo sempre o monge diante dos olhos o temor de Deus, evite, absolutamente, qualquer esquecimento,  e esteja, ao contrário, sempre lembrado de tudo o que Deus ordenou, revolva sempre, no espírito, não só que o inferno queima, por causa de seus pecados, os que desprezam a Deus, mas também que a vida eterna está preparada para os que temem a Deus;  e, defendendo-se a todo tempo dos pecados e vícios, isto é, dos pecados do pensamento, da língua, das mãos, dos pés e da vontade própria, como também dos desejos da carne,  considere-se o homem visto do céu, a todo momento, por Deus, e suas ações vistas em toda parte pelo olhar da divindade e anunciadas a todo instante pelos anjos.  Mostra-nos isso o Profeta quando afirma estar Deus sempre presente aos nossos pensamentos: "Deus que perscruta os corações e os rins".  E também: "Deus conhece os pensamentos dos homens".  E ainda: "De longe percebestes os meus pensamentos"  e "o pensamento do homem vos será confessado".  Portanto, para que esteja vigilante quanto aos seus pensamentos maus, diga sempre, em seu coração, o irmão empenhado em seu próprio bem: "se me preservar da minha iniqüidade, serei, então, imaculado diante d’Ele".

 Assim, é-nos proibido fazer a própria vontade, visto que nos diz a Escritura: "Afasta-te das tuas próprias vontades".  E, também, porque rogamos a Deus na oração que se faça em nós a sua vontade.

 Aprendemos, pois, com razão, a não fazer a própria vontade, enquanto nos acautelamos com aquilo que diz a Escritura: "Há caminhos considerados retos pelos homens cujo fim mergulha até o fundo do inferno",  e enquanto, também, nos apavoramos com o que foi dito dos negligentes: "Corromperam-se e tornaram-se abomináveis nos seus prazeres".  Por isso, quando nos achamos diante dos desejos da carne, creiamos que Deus está sempre presente junto a nós, pois disse o Profeta ao Senhor: "Diante de vós está todo o meu desejo".

 Devemos, portanto, acautelar-nos contra o mau desejo, porque a morte foi colocada junto à porta do prazer.  Sobre isso a Escritura preceitua dizendo: "Não andes atrás de tuas concupiscências".  Logo, se os olhos do Senhor "observam os bons e os maus",  e "o Senhor sempre olha do céu os filhos dos homens para ver se há algum inteligente ou que procura a Deus"  e se, pelos anjos que nos foram designados, todas as coisas que fazemos são, cotidianamente, dia e noite, anunciadas ao Senhor,  devemos ter cuidado, irmãos, a toda hora, como diz o Profeta no salmo, para que não aconteça que Deus nos veja no momento em que caímos no mal, tornando-nos inúteis,  e para que, vindo a poupar-nos nessa ocasião porque é Bom e espera sempre que nos tornemos melhores, não venha a dizer-nos no futuro: "Fizeste isto e calei-me".

 O segundo grau da humildade consiste em que, não amando a própria vontade, não se deleite o monge em realizar os seus desejos,  mas imite nas ações aquela palavra do Senhor: "Não vim fazer a minha vontade, mas a d’Aquele que me enviou".  Do mesmo modo, diz a Escritura: "O prazer traz consigo a pena e a necessidade gera a coroa".

 O terceiro grau da humildade consiste em que, por amor de Deus, se submeta o monge, com inteira obediência ao superior, imitando o Senhor, de quem disse o Apóstolo: "Fez-se obediente até a morte".

 O quarto grau da humildade consiste em que, no exercício dessa mesma obediência abrace o monge a paciência, de ânimo sereno, nas coisas duras e adversas, ainda mesmo que se lhe tenham dirigido injúrias,  e, suportando tudo, não se entregue nem se vá embora, pois diz a Escritura: "Aquele que perseverar até o fim será salvo".  E também: "Que se revigore o teu coração e suporta o Senhor".  E a fim de mostrar que o que é fiel deve suportar todas as coisas, mesmo as adversas, pelo Senhor, diz a Escritura, na pessoa dos que sofrem: "Por vós, somos entregues todos os dias à morte; somos considerados como ovelhas a serem sacrificadas".  Seguros na esperança da retribuição divina, prosseguem alegres dizendo: "Mas superamos tudo por causa daquele que nos amou".  Também, em outro lugar, diz a Escritura: "Ó Deus, provastes-nos, experimentastes-nos no fogo, como no fogo é provada a prata: induzistes-nos a cair no laço, impusestes tribulações sobre os nossos ombros".  E para mostrar que devemos estar submetidos a um superior, continua: "Impusestes homens sobre nossas cabeças". Cumprindo, além disso, com paciência o preceito do Senhor nas adversidades e injúrias, se lhes batem numa face, oferecem a outra; a quem lhes toma a túnica cedem também o manto; obrigados a uma milha, andam duas; suportam, como Paulo Apóstolo, os falsos irmãos e abençoam aqueles que os amaldiçoam.

O quinto grau da humildade consiste em não esconder o monge ao seu Abade todos os maus pensamentos que lhe vêm ao coração, ou o que de mal tenha cometido ocultamente, mas em lho revelar humildemente,exortando-nos a este respeito a Escritura quando diz: "Revela ao Senhor o teu caminho e espera nele".  E quando diz ainda: "Confessai ao Senhor porque ele é bom, porque sua misericórdia é eterna".  Do mesmo modo o Profeta: "Dei a conhecer a Vós a minha falta e não escondi as minhas injustiças. Disse: acusar-me-ei de minhas injustiças diante do Senhor, e perdoastes a maldade de meu coração".

O sexto grau da humildade consiste em que esteja o monge contente com o que há de mais vil e com a situação mais extrema e, em tudo que lhe seja ordenado fazer, se considere mau e indigno operário, dizendo-se a si mesmo com o Profeta: "Fui reduzido a nada e não o sabia; tornei-me como um animal diante de Vós, porém estou sempre convosco".

O sétimo grau da humildade consiste em que o monge se diga inferior e mais vil que todos, não só com a boca, mas que também o creia no íntimo pulsar do coração, humilhando-se e dizendo com o Profeta: "Eu, porém, sou um verme e não um homem, a vergonha dos homens e a abjeção do povo: exaltei-me, mas, depois fui humilhado e confundido". E ainda: "É bom para mim que me tenhais humilhado, para que aprenda os vossos mandamentos".

O oitavo grau da humildade consiste em que só faça o monge o que lhe exortam a Regra comum do mosteiro e os exemplos de seus maiores.

O nono grau da humildade consiste em que o monge negue o falar a sua língua, entregando-se ao silêncio; nada diga, até que seja interrogado,  pois mostra a Escritura que "no muito falar não se foge ao pecado" [58 e que "o homem que fala muito não se encaminhará bem sobre a terra".

O décimo grau da humildade consiste em que não seja o monge fácil e pronto ao riso, porque está escrito: "O estulto eleva sua voz quando ri".

O undécimo grau da humildade consiste em, quando falar, fazê-lo o monge suavemente e sem riso, humildemente e com gravidade, com poucas e razoáveis palavras e não em alta voz, conforme o que está escrito: "O sábio manifesta-se com poucas palavras".

O duodécimo grau da humildade consiste em que não só no coração tenha o monge a humildade, mas a deixe transparecer sempre, no próprio corpo, aos que o vêem, isto é, que no ofício divino, no oratório, no mosteiro, na horta, quando em caminho, no campo ou onde quer que esteja, sentado, andando ou em pé, tenha sempre a cabeça inclinada, os olhos fixos no chão, considerando-se a cada momento culpado de seus pecados, tenha-se já como presente diante do tremendo juízo de Deus,  dizendo-se a si mesmo, no coração, aquilo que aquele publicano do Evangelho disse, com os olhos pregados no chão: "Senhor, não sou digno, eu pecador, de levantar os olhos aos céus". E ainda, com o Profeta: "Estou completamente curvado e humilhado".

Tendo, por conseguinte, subido todos esses degraus da humildade, o monge atingirá logo, aquela caridade de Deus, que, quando perfeita, afasta o temor;  por meio dela tudo o que observava antes não sem medo começará a realizar sem nenhum labor, como que naturalmente, pelo costume,  não mais por temor do inferno, mas por amor de Cristo, pelo próprio costume bom e pela deleitação das virtudes.

Eis o que, no seu operário, já purificado dos vícios e pecados, se dignará o Senhor manifestar por meio do Espírito Santo.